Muitas vezes, acreditamos ser a preocupação com a formação ética mais uma das novas atribuições da escola, em função de sua crescente presença na contemporaneidade. No entano, esse tipo de preocupação remonta pelo menos ao início da tradição do pensamento ocidental. A possibilidade e os desafios da formação ética foram tema recorrente dos diálogos e escritos de filósofos, escritores e poetas da Grécia Clássica. Destacamos alguns trechos desses diálogos, cuja leitura pode ainda guardar interesse para nós hoje.
Período homérico - As pessoas já nascem virtuosas ou não
Aquiles, modelo de guerreiro perfeito, concorda em entrar na luta. Pronto para a batalha, vestindo a armadura que lhe fez o deus-ferreiro Hefesto, ele brilha como o sol. Seus maxilares se trancam, seus olhos
lançam fagulhas. Com voz plangente como uma trombeta ele chama seus cavalos imortais, que nenhum outro homem consegue dominar, e um dos animais lhe responde. Sim, diz o corcel, ainda desta vez eles trarão de volta seu dono, são e salvo, ao campo grego, porém o dia de sua morte já se aproxima e quando este chegar, ainda que eles tivessem a velocidade e a força do vento oeste, não seriam capazes de salvá-lo. “Você está destinado a morrer violentamente, Aquiles.” A resposta de Aquiles é impaciente: “Não perca fôlego em dizer isso, pois eu sei. Sei muito bem.” Com um grito assustador ele lança seu carro de guerra em direção à linha de frente. (Homero - Ilíada)
Período socrático e pós-socrático - discussões sobre o ensino das virtudes
Os homens tornam-se bons e virtuosos devido a três fatores, e estes são, a natureza, o hábito e a razão. Ora, a razão e a inteligência são os fins da nossa natureza. Por isso é necessário preparar-lhes a formação e o cultivo dos hábitos. Já se disse que a natureza devem ser os futuros cidadãos [...] o resto é obra da educação.
Realmente toda arte e educação esforçam-se por completar o que falta à natureza. Ninguém porá em dúvida que ao legislador incumbe, sobretudo o cuidado à educação. Pois o costume adequado a cada constituição sói defendê-lo e, no começo fundá-lo também… E sempre o costume melhor é a causa de melhor constituição. É claro, então que compete às leis regularem a educação e torná-la pública. (Aristóteles - A Política)
"Em verdade, com este
meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de
que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com
qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne
excelente e muito virtuosa, e de que das riquezas não se origina a virtude, mas
da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que são venturas
para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se
ao falar desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que
minhas palavras são nocivas, mas se alguém afirma que falo diferentemente e não
deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso, permiti que vos diga, ó
cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis
ou não, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra
maneira que esta, mesmo que não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer." (Platão - A Defesa de Sócrates)
Aristóteles e a defesa de que as virtudes podem ser ensinadas
Portanto,
nem por natureza nem contrariamente à natureza a excelência moral é engendrada
em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se
aperfeiçoa com o hábito. (...)
Logo,
acontece o mesmo com as várias formas de excelência moral; na prática de atos
em que temos de engajar-nos dentro de nossas relações com outras pessoas,
tornamo-nos justos ou injustos; na prática de atos em situações perigosas, e
adquirindo o hábito de sentir receio ou confiança, tornamo-nos corajosos ou covardes.
O mesmo se aplica aos desejos e à ira; algumas pessoas se tornam moderadas e
amáveis, enquanto outras se tornam concupiscentes ou irascíveis, por se
comportarem de maneiras diferentes nas mesmas circunstâncias. Em uma palavra,
nossas disposições morais resultam das atividades correspondem às diferenças
entre nossas atividades. Não será pequena a diferença, então, se formarmos os
hábitos de uma maneira ou de outra desde nossa infância; ao contrário, ela será
muito grande, ou melhor, ela será decisiva. (...)
Devemos
considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram três
espécies de coisas – paixões, faculdades e disposições de caráter -, a virtude
deve pertencer a uma delas.
Por
paixões entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria,
a amizade, o ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos
que são acompanhados de prazer ou dor; por faculdades, as coisas em virtude das
quais se diz que somos capazes de sentir tudo isso, ou seja, de nos irarmos, de
magoar-nos, ou compadecer-nos; por disposições de caráter, as coisas em virtude
das qual nossa posição com referência às paixões é boa ou má. Por exemplo, com
referência à cólera, nossa posição é má se a sentimos de modo violento ou
demasiada fraco, e boa se a sentimos moderadamente; e da mesma forma no que se
relaciona com as outras paixões. (...)
Por
conseguinte, se as virtudes não são paixões nem faculdades, só resta uma
alternativa: a de que sejam disposições
de caráter. (...)
Analogamente,
no que tange às ações também existe excesso, carência e um meio-termo. Ora, a
virtude diz respeito às paixões e ações em que o excesso é uma forma de erro,
assim como a carência, ao passo que o meio-termo é uma forma de acerto digna de
louvor; e acertar e ser louvada são características da virtude. Em conclusão, a
virtude é uma espécie de mediania, já que como vimos ela põe a sua mira no
meio-termo. (...)
A
virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e
consistente numa mediania, isto é, um justo meio relativo a nós, a qual é
determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria
prática (prudência / fronesis). E é um meio-termo entre dois vícios, um por excesso
e outro por falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe ou ficam
aquém do que é conveniente no tocante às ações e paixões, a virtude encontra e
escolhe o meio-termo. (...)
Tanto
a virtude como o vício está em nosso poder. Com efeito, sempre que está em
nosso poder o fazer, também o está o não fazer, e sempre que está em nosso
poder o não, também está o sim. (...)
(Aristóteles - Ética a Nicômaco)
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